Nas águas geladas do Canal da Mancha, um grupo de homens, mulheres e crianças boia, enquanto seguram as mãos uns dos outros para se manterem à tona.
Alguns fazem ligações desesperadas para equipes de resgate em telefones celulares mantidos acima das ondas. Mas, à medida que a hipotermia se instala, os dispositivos escorregam de suas mãos antes que consigam enviar sua localização.
O bote no qual esperavam chegar à costa britânica está com o motor quebrado e esvaziando.
Um integrante do grupo consegue enviar uma mensagem de voz para casa.
Poucas horas depois, pelo menos 30 pessoas estão mortas, há apenas dois sobreviventes — o pior afogamento em massa de migrantes no Canal da Mancha já registrado.
O que deu errado? A seguir, fazemos uma reconstituição das horas finais do grupo — por meio do testemunho dos sobreviventes, mensagens de telefone celular, dados de transporte e o atendimento de emergência.
Ao anoitecer, Hadiya Rzgar Hussein, de 22 anos, sua irmã de sete, Hasti, seu irmão Mubin, de 16, e sua mãe, Kazhal, de 46, reúnem seus pertences no acampamento improvisado em Grande-Synthe, na França, onde haviam permanecido por várias semanas.
Eles estão cansados e com medo. A polícia francesa desmantelou recentemente o acampamento de Grande-Synthe, despejou seus ocupantes e destruiu a tenda da família — e eles estão desesperados para encontrar os parentes no Reino Unido.
Para fazer isso, eles precisam enfrentar a chamada “rota da morte” por meio do Canal da Mancha, pagando contrabandistas para levá-los até lá em pequenos barcos infláveis baratos.
Embora os íngremes penhascos brancos de Dover sejam visíveis de parte da costa em um dia claro, a travessia é perigosa. É uma das rotas marítimas mais movimentadas do mundo — e aqueles que a cruzam precisam enfrentar as temperaturas congelantes do ar e do mar, além de correntes perigosas
O Canal da Mancha é uma das rotas marítimas mais movimentadas do mundo
No seu ponto mais estreito, o canal tem apenas 33 km
Das praias perto de Dunquerque, são cerca de 61 km até a costa inglesa
Hadiya e a família já haviam tentado atravessar três vezes antes. Uma vez foram impedidos pela polícia, depois ficaram sem combustível e na terceira tentativa o motor do barco falhou
Mas os sonhos de Hadiya de se tornar médica levam ela e sua família a seguir adiante.
“Quem não deseja uma vida boa? Quem quer uma vida ruim? Todos os quatro queriam ir. Eu orei a Deus: ‘Por favor, faça com que seus desejos se tornarem realidade’", conta o pai dela, Rizgar Hussien Mohammed, à BBC de sua casa no Curdistão iraquiano.
Quando a noite cai, contrabandistas dizem à família que é hora de partir, e eles se juntam a pelo menos 28 outras pessoas a bordo de um ônibus arranjado para Loon-Plage, um trecho da costa entre Dunquerque e Calais.
A BBC apurou que 20 desses passageiros eram do Curdistão iraquiano.
A viagem para a praia é curta — apenas 10 minutos — e muitos no ônibus começam a entrar em contato com a família para avisá-los que estão prestes a deixar a França.
Os melhores amigos Rezhwan Yasin Hassan, de 19 anos, Zanyar Mustafa Mina, de 20, e Mohammed Qadir Aulla, de 21, todos do Curdistão iraquiano, estão entre os que enviam mensagens para casa de um telefone compartilhado.
Pouco tempo depois, outro grupo de amigos e conhecidos, que também estava no ônibus, entrou em contato com suas famílias no Iraque de vários telefones compartilhados.
Os mais novos são Pshtiwan Rasul Farka e Twana Mamand Mohammed, ambos de 18 anos, e Mohammed Hussein Mohammed, de 19. Viajando com eles também estão “Hybar” Bryar Hamad Abdulrahman, de 23, Afrasia Ahmed Mohammed, de 27, “Harem” Serkaut Perot Muhammad, de 28, Shakar Ali Pirot, de 30, e Hassan Mohammed Ali, de 37.
Entre eles, está um iraniano, Sirwan Alipour, de 23 anos
Bryar liga para sua mãe e diz que entrará em contato com ela “quando estiver do outro lado do canal”.
Hadiya, a jovem de 22 anos que espera se formar em medicina, envia uma mensagem para o pai — o homem que tornou esta viagem possível. Ele vendeu a casa da família e pediu dinheiro emprestado para levantar os US$ 42 mil necessários
A curda iraquiana “Baran” Maryam Nuri Mohamed Amin, de 24 anos, que tenta falar com o noivo no Reino Unido, e sua amiga, Mhabad Ahmad Ali, de 32, também estão entrando no barco.
Para dar a partida, as condições precisam ser adequadas — sem patrulhas policiais, com céu limpo e mar calmo. Por volta das 22h, horário da França, os traficantes dão aos migrantes o sinal verde final para atravessar.
Alguns socorristas chamam estas condições de “clima dos migrantes” porque é quando muitos decidem fazer a travessia. Mas alertam que não é o vento o maior desafio. É a temperatura congelante do ar e do mar.
Vários botes são desenterrados de seus esconderijos ao longo das dunas, onde eram mantidos fora da vista da polícia.
Pelo menos seis barcos partem naquela noite.
Hadiya e a família, junto a todos os outros passageiros do ônibus, recebem um bote inflável de borracha de 10 m de comprimento com um motor acoplado na parte traseira. Um barco como este de segunda mão pode ser comprado por £ 400. Não tem uma base sólida e não foi projetado para transportar com segurança mais de 20 pessoas.
Mas este pequeno bote deixa a França com uma carga humana de pelo menos 32 adultos e crianças a bordo.
O barco avança em mar aberto, e Pshtiwan envia sua última mensagem de voz para casa — o motor do bote pode ser ouvido ao fundo.
Com sobrecarga, o barco avança lentamente — em parte por causa do excesso de peso —, enquanto se dirige a noroeste noite adentro. Os passageiros se agarram uns aos outros e às laterais da embarcação, conforme as ondas aumentam de tamanho.
Outro grupo de migrantes que faz a mesma travessia e partiu apenas uma hora depois descreve “grandes ondas e mau tempo”. Eles ficam encharcados no frio congelante. Alguns também ficam enjoados e acabam abortando a viagem e voltando para a França.
Hadiya e seu grupo começam a enfrentar dificuldades.
Quando o bote chega no meio do Canal da Mancha, o lado direito começa a esvaziar — e começa a entrar água na embarcação.
“Algumas pessoas bombeavam ar nele, e outras tiravam água do bote”, diz o curdo iraquiano Mohammed Shaikh Ahmad, de 21 anos, um dos dois únicos sobreviventes, à televisão curda.
Baran manda mensagens para seu noivo no Reino Unido, Karzan, pelo Snapchat. Ela descreve como o barco está perdendo ar e entrando na água, mas brinca e tenta tranquilizá-lo. Os que dirigem o barco estão se esforçando para mantê-lo à tona, diz ela, que afirma ter certeza de que as autoridades os resgatarão em breve.
Os passageiros começam a debater sobre fazer sinal para um navio que avistaram à distância, mas o consenso é de que deveriam seguir para o Reino Unido.
Mas o pior ainda está por vir. Pouco tempo depois, o motor do barco para, deixando o bote e seus passageiros à mercê das correntes do Canal da Mancha.
O barco começa a ser engolido pelas ondas.
“Em 30 minutos, o barco inteiro afundou”, conta o outro sobrevivente, Mohammed Isa Omar, de 28 anos, da Somália, à BBC.
À medida que mergulham na água gelada, os integrantes do grupo se agarram uns aos outros e ao que sobrou do bote vazio, para evitar que se afastem.
Eles viajaram pelo menos 30 km da praia de onde embarcaram. Uma análise da BBC de dados de navegação sugere que eles estão agora perto da linha marítima que marca o início das águas territoriais britânicas.
Enquanto eles se dão as mãos, aqueles que podem, incluindo Mubin, de 16 anos — irmão mais novo de Hadiya — ligam para as autoridades francesas e inglesas para pedir ajuda.
No meio de uma conversa com seu noivo, Baran sai do Snapchat.
Pelo menos dois membros do grupo entram em contato com as autoridades britânicas por telefone, que perguntam a localização do grupo e dizem para manterem suas lanternas do celular ligadas. Mas os telefones dos passageiros caem na água antes que eles sejam capazes de enviar os detalhes, dizem os sobreviventes.
Por volta deste momento, Shakar Ali Pirot envia uma mensagem de voz para a família.
Ele diz que se for salvo, jogará seu telefone no mar — algo que muitos migrantes contaram à BBC que são orientados a fazer por contrabandistas para proteger a identidade dos traficantes de pessoas. Alguns também dizem que fazem isso para esconder detalhes que podem impedir que seus pedidos de asilo sejam aceitos uma vez em solo britânico.
Acredita-se que a mensagem de voz de Shakar seja a última comunicação proveniente do bote que se tem conhecimento.
De acordo com a troca de WhatsApp entre Shakar e sua família, vista pela BBC, o telefone dele fica online até 04h14, horário da França, mas ele não envia mais mensagens.
O barco agora está completamente submerso, e todos os passageiros estão na água. A hipotermia se instala.
“Eu vi pessoas morrendo na minha frente”, diz o sobrevivente Mohammed Isa Omar.
Ele é um grande nadador e tenta chegar a um barco próximo.
Um segundo bote de migrantes — que partiu duas horas depois do que transportava Hadiya e sua família — chega no meio do Canal da Mancha. À luz do amanhecer, eles veem corpos na água. Os passageiros deste barco pedem ajuda às autoridades francesas.
“Vi alguns corpos sem colete salva-vidas e outros com (colete), mas do pior tipo, aqueles muito baratos”, diz um homem anônimo em mensagem de áudio ouvida pela BBC. “Como eu estava em choque, não vi seus rostos, mas parecia que já deviam estar mortos há algum tempo. Talvez duas horas depois do barco deles ter virado. ”
Este segundo bote chega mais tarde em segurança ao Reino Unido.
Quase 12 horas se passaram desde que Hadiya e seu grupo caíram na água.
Pouco antes das 14h, horário da França, o pescador francês Karl Maquinghen, de 37 anos, e sua tripulação, a bordo da traineira Saint Jacques II, avistam 15 corpos na água.
“Nos sentimos mal”, conta ele à BBC. “Apesar de trabalhar como pescador há 20 anos... esta foi a primeira vez que vi algo assim. Vimos barcos vazios desinflados, mas nunca corpos."
Karl diz que muitas das vítimas que usavam colete salva-vidas não conectaram a cinta entre as pernas corretamente, o que tornaria mais difícil manter a cabeça acima da água.
Karl e sua tripulação rapidamente soam o alarme, e o navio da marinha francesa que está nas proximidades, o FS Flamant — a cerca de 5 km de distância — responde.
O FS Flamant chega ao local, ainda em águas territoriais francesas
Um helicóptero da guarda costeira britânica se junta à busca e localiza destroços na água, a alguns quilômetros a nordeste
O foco da busca muda e, por volta das 15:45, dois navios da guarda costeira francesa chegam ao novo local
O bote vazio, o restante dos mortos e os dois sobreviventes são encontrados a 6km de onde os primeiros corpos foram avistados
Ao todo, são resgatados 27 corpos, entre os quais de sete mulheres, duas adolescentes e uma menina.
Os dois sobreviventes afirmam que o bote havia atravessado para águas britânicas. Eles dizem que continuaram a fazer ligações desesperadas tanto para as autoridades britânicas quanto francesas, mas foram instruídos por ambos os lados a ligar para o outro.
De acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, os países são obrigados a “prestar assistência a qualquer pessoa encontrada no mar em risco de morte”.
As autoridades marítimas francesas afirmam que “não estavam cientes de que esta embarcação estava em dificuldades antes do alerta feito por um navio de pesca”, fazendo referência ao Saint Jacques II. Eles acrescentam que naquela mesma noite, 106 pessoas foram salvas durante três operações diferentes.
No entanto, de acordo com o jornal francês Le Monde, uma fonte da investigação policial oficial revelou que as contas telefônicas detalhadas dos sobreviventes confirmam as alegações de que eles ligaram para as autoridades francesas em busca de ajuda.
As autoridades do Reino Unido insistem que o bote nunca esteve em território britânico e rejeitam quaisquer alegações de que deixaram de responder ao pedido de ajuda do barco naufragado.
Uma análise à qual a BBC teve acesso exclusivo sugere que o bote dos migrantes se aproximou, mas nunca chegou a entrar nas águas do Reino Unido.
Os dados meteorológicos e das correntes marítimas deste local ao longo do dia sugerem que o barco certamente teria sido empurrado, mas podemos deduzir a partir do local onde os migrantes foram encontrados e da direção das correntes, que as ondas não os teriam empurrado de volta das águas britânicas.
A BBC confirmou que pelo menos 30 pessoas morreram naquela noite — de longe a pior tragédia com migrantes já registrada no Canal da Mancha. Com a ajuda de muitas famílias no Curdistão iraquiano, conseguimos identificar 20 pessoas que estavam a bordo.
Entre as vítimas, estão Hadiya e sua família, incluindo sua irmã Hasti, de sete anos.
Estão também Baran e sua amiga Mhabad; os melhores amigos Rezhwan e Mohammed Qadir; e os jovens Afrasia, Bilind, Bryar, Harem, Hassan, Mohammed Hussein, Muslim, Shakar e Sirwan.
O corpo de Zanyar — melhor amigo de Rezhwan e Mohammed — ainda não foi recuperado. Pshtiwan e Twana também ainda estão desaparecidos.
Todos eles eram migrantes econômicos e quase todos já haviam tentado — e não conseguido — várias vezes chegar ao Reino Unido por meio de rotas legais. Todos eles também haviam tentado atravessar o Canal da Macha pelo menos três e, em alguns casos, seis vezes em pequenos barcos.
As autoridades francesas disseram à BBC que outros dez passageiros que morreram foram identificados como três etíopes, uma mulher somaliana, quatro homens do Afeganistão, um homem do Egito e uma pessoa do Vietnã.
Para Rzgar Hussein Mohammed, a dor de perder a esposa e três filhos naquela noite é insuportável.
“Não posso fazer nada”, diz ele à BBC. “Não consigo comer nem dormir. Estou ficando louco. Ninguém pode viver sem família.”
Um mês depois, apesar das temperaturas congelantes, centenas de migrantes continuam a atravessar o Canal da Mancha todas as semanas.
Expulsos de seus acampamentos improvisados pela polícia francesa em Calais, muitos dizem que não têm escolha a não ser se arriscar nas ondas do Canal da Mancha.
Reportagem: Claire Press, Emir Nader e Lucy Rodgers
Reportagem adicional: Camille Toulmé, Dina Demrdash, Hanan Razek, Lina Issa, Marewan Zangana, Mohamed Madi, Soran Qurbani e Yoruk Isik
Produção: Lucy Rodgers, Claire Press, Emir Nader, Dominic Bailey, Nassos Stylianou e Ana Lucia Gonzalez, com edição de texto de Sarah Buckley
Design: Prina Shah e Zoe Bartholomew
Desenvolvimento: Marcos Gurgel, Scott Jarvis e Adam Allen
Fotografia: Marek Polaszewski, Gabriel Chaim, Reuters, the Press Association
Dados cartográficos: Marine Traffic, FightRadar24, Big Ocean Data, VesselsValue
Imagens de satélite: Nasa Landsat, Copernicus Sentinel 2
Agradecimentos a www.lutka.org